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domingo, 14 de julho de 2013

Samuel Hart

               Parte Um: Tramas no "Grande" Salão
 O Grande Salão da Vila de Hart estava repleto de pessoas naquela noite fria. O
fogo aceso no centro do grande salão matinha o frio da estação afastado, e apesar da
fumaça que se acumulava entre as vigas e fazia arder os olhos, todos estavam gratos
pelo calor. Mais adiante, alguns metros além do fogo, ficava o estrado de madeira, e
sobre ele o trono. Lá era o lugar do Senhor do Salão. Um lugar de honra e nobreza.

 O Grande Salão de Hart era grande apenas no nome. Salões são locais nobres
e espaçosos, com altas colunas e trabalhadas vigas em arco, mas o salão de Hart era
pouco mais que um braço mais alto que um homem, e por isso a fumaça ardia nos
olhos. A vila era pequena, e isso se refletia em seu salão.

 No entanto, A vila de Hart ainda tinha sorte em ter um salão. Hart era apenas
um lugarejo em meio a muitos outros lugarejos do Condado de Vezzas, e muitos
outros lugarejos não tinham nem um pequeno Grande Salão onde os aldeões podiam
ir para se reunir e ouvir seu senhor e partilhar bebida com seus iguais, e festejar
casamentos... mas essa noite, um estranho silêncio tomava O Salão. Não havia
música ou bebidas, apenas um leve burburinho dos curiosos disputava com o soprar
do vento e o crepitar do fogo.

 As portas do salão se abriram quebrando o silêncio. Todos puderam ver
quando dois guardas da vila entraram trazendo sob escolta um homem já de idade
avançada e longos cabelos brancos. Atravessaram o salão levando-o pelos braços e
o puseram de frente para o trono no estrado. Então, um chute o colocou de joelhos.
 Gritos de "Assassino!" e "Enganador!" tomaram o salão as pessoas mais
próximas se revezaram para cuspir no homem ajoelhado, enquanto as mais afastadas
gritavam e incentivavam os que estavam mais adiante. Os guardas quase fizeram
esforço para impedir os chutes e tapas que foram dirigidos ao prisioneiro, mas antes
que tudo saísse do controle, o arauto do salão fez soar a trombeta. O senhor da vila
de Hart havia tomado seu lugar no trono.

A balbúrdia foi morrendo aos poucos, até que único som audível era o crepitar
do fogo novamente, e durante todo esse tempo, o senhor do Salão, Lord Rufus
Ivantar, observava o prisioneiro com um olhar que era o misto de incredulidade e
indignação.
 A voz do arauto soou alta e clara:
 --Samuel Hart, você está aqui para ser julgado pela acusação de calúnia,
falsificação e assassinato. O que diz o acusado?

 Samuel Hart era um homem de meia idade, longos cabelos brancos caindo
sobre o traje de viagem surrado. Num passado distante, sua família era dona de toda
a terra da vila e das fazendas em volta. Mas as gerações passaram, os monarcas
mudaram, de modo que hoje a família Hart não possuía na região mais do que uma
pequena propriedade e o nome do lugarejo, e ambos não valiam muita coisa.
Agora, ajoelhado ali em meio ao "Grande" Salão de Hart, Samuel colocava a
vida em perspectiva. Durante a juventude gastou fortunas em viagens para reinos
exóticos e cidades distantes, em coleções de livros esquecidos e pesquisas mágicas
infrutíferas.

Quando retornou de uma dessas viagens, encontrou a jovem esposa
morta por uma doença qualquer, e sua jovem filha, Catherine, que já não reconhecia o rosto do pai. Toda aquelas viagens pareceram em vão para ele. Uma armadilha para
levá-lo para longe do que importava de fato...
Depois da morte da esposa, Samuel decidiu que usaria o que havia aprendido
para ajudar a vila que já fora de seus ancestrais. Fazia experimentos em casa e
propunha soluções absurdas para as pragas no plantio ou sugestões sem sentido para
escavar um poço ou aperfeiçoar um barco... todos o chamavam de louco. E de fato,
talvez houvesse enlouquecido com a morte da mulher.

 Foi só anos mais tarde que, enquanto folheava os livros reunidos na juventude,
Samuel encontrou a resposta que buscava a tantos anos. O trabalho seria árduo e
longo, e seu tempo curto, mas começaria imediatamente. Traçando seu plano com
cuidado e se preparando para uma longa viagem, só precisava agora testar o seu
modo de operação. E foi então que tudo deu errado, já na primeira tentativa.
 E agora, esta aqui, ajoelhado diante de Lorde Rufus, o Senhor da Vila de Hart.
 Samuel apoiou as mãos ainda acorrentadas no chão para se levantar. As
correntes tilintaram sobre o crepitar do fogo, e de pé Samuel olhou a sua volta,
procurando Catherine, mas não a encontrou. Continuou mesmo assim:
 --Todos aqui me chamam de Louco. --disse alto para todo o salão-- E talvez eu
seja, mas eu não matei seus homens. -- essa última parte se dirigindo a Lorde Rufus.--
E tão pouco eu falsifiquei ou caluniei!
 O burburinho se iniciou no salão novamente, mas lorde Rufus ergueu as mãos
pedindo silencio, levantando-se do trono.
 --Samuel Hart veio a mim oferecendo seus serviços como cartógrafo. Faria um
mapa da região com seus marcos e divisas por Mil dobrões. Mas para isso, precisaria
de um guia e uma escolta. O guia foi encontrado morto nas imediações do charco, e a
escolta ainda está desaparecida. Samuel, você é um assassino e um mentiroso! --
Lorde Rufus gritava e babava enquanto o povo no salão gritava de acordo. Todos
exceto Catherine que agora podia ser vista abrindo passagem entre a turba, junto com
seu esposo, Walter Merz.

 Novamente as pessoas gritaram e bateram os pés, e mais uma vez a trombeta
do arauto fez o silencio.
 Samuel puxou os ombros do aperto dos guardas e olhou para Catherine, agora
casada com um bem sucedido comerciante de Lã e Algodão da região. O rapaz não
tinha fibra, mas era um homem bom... Samuel agora lamentava não ter ido ao
casamento, mas não havia tempo para isso.
 Samuel podia ver claramente a expressão de terror no rosto da filha. Ela temia
que ele fosse preso ou condenado à forca.
 --Então, Samuel--Continuou Lorde Rufus-- Como pretende provar sua
inocência?
--Eles estão vivos, Lorde Rufus -- disse Samuel, e de súbito todo o salão fez
silencio-- e se me libertar eu posso..
 A gargalhada de Lorde Rufus não permitiu que Samuel terminasse suas
palavras.
 --Acredita mesmo, que eu o libertaria-- disse ainda rindo, Lorde Rufus--para
que pudesse desaparecer novamente? Me tem como um estúpido? Você dança na
forca ao amanhecer.
 A comoção no "Grande"Salão foi imediata, mas em meio aos gritos
de"assassino" e "Mentiroso", ouvia-se o grito desesperado de Catherine :
 --Não! NÃO! EU FICO NO LUGAR DELE! EU FICO NO LUGAR DELE!
 Lorde Rufus ergueu as mãos novamente, mas ninguém atendeu ao pedido de
silêncio, e Catherine ainda gritava quando finalmente o arauto fez soar a trombeta.
 --Eu fico no lugar dele...-- Dizia Catherine enquanto lutava para continuar ali, pois Walter agora tentava afastá-la das vistas de Lord Rufus.
 --Catherine, não!--O protesto de Samuel soou como um pedido.

 As coisas tinham acabado de ficar interessantes para Lord Rufus. Lorde Rufus
sempre viu em Samuel uma ameaça. Um herdeiro da linhagem fundadora da Vila de
Hart, um homem letrado e inteligente, e que tinha desposado quando jovem a mesma
mulher que Lorde Rufus também cortejara. A muito tempo Lorde Rufus tem tentado
encontrar uma maneira de desacreditar Samuel diante do povo da vila, e então, havia
armado com um dos homens da escolta para fazer com que Samuel sofresse um
pequeno acidente durante a expedição. No entanto, algo saíra errado. Agora ele tinha
a chance de ganhar ainda mais do que tinha planejado. Só lhe faltava um pequeno
ajuste:
 --Eu aceito a proposta de ficar com um parente em seu lugar, Samuel, se você
se comprometer em trazer os desaparecidos de volta. então eles poderão testemunhar
a seu favor, e tudo ficará resolvido. No entanto, se você falhar, ou desaparecer, tanto
você quanto seu parente serão condenados ao cadafalso.
 --Não toque na minha filha! Você não pode...
 --Sua filha? De modo algum, Samuel. Guardas, prendam o marido dela. Eu não
acho adequado uma dama em nossas masmorras.--O sorriso de Lorde Rufus mal
podia ser contido. E se aproximando de Samuel, continuou num sussurro--Não se
preocupe, Samuel. Se você falhar e a justiça precisar ser feita, eu cuidarei de
Catherine pessoalmente.
 Então, os guardas levaram Walter e Samuel para as masmorras.
* * * 
 Mais tarde, Catherine foi visitar o pai nas masmorras. A cela de pedra ficava a
2 metros abaixo do solo, e tinha uma única grade de ferro como porta. Ratos eram
comuns ali, entre os prisioneiros e seus dejetos.
 --Não se preocupe, Pai. Lorde Rufus me garantiu que você será escoltado por
seus melhores homens.
 --Catherine, não! Não podemos confiar nos homens da guarda. Eles tentarão
me assassinar. --Catherine estava chocada-- Precisamos de pessoas de fora. Você
precisa encontrar outras pessoas para me acompanhar...
 --Mas porque Lorde Rufus faria isso, papai? Eu não entendo!
 --Se eu morrer, e seu marido morrer, Catherine, você estará sozinha! E sendo
a última descendente de Hart aqui, o que você acha que iria acontecer?
 Catherine então compreendeu. A idéia era amarga demais para ser expressa
em palavras. Se seu pai e seu marido morressem, isso faria dela a herdeira da familia
Merz e da Familia Hart. No entanto, sendo a última Hart, viúva, seria direito do Lorde
da Vila tomá-lá em matrimonio, assim como todas as posses das duas familias para
então legitimar seu título.

 Catherine precisaria de aventureiros. E rápido.

Por Roberto Garcia